A pequena região gaúcha que virou um dos locais mais importantes do mundo para estudar dinossauros.
Em suas profundezas, no entanto, elas guardaram, por 230 milhões anos — e ainda guardam —, fósseis dos primeiros dinossauros e dos antepassados dos mamíferos, compondo um tesouro paleontológico, que as tornam um dos pontos mais importantes do mundo para se estudar e entender o início do Triássico — período geológico que se estende de 252 milhões a 201 milhões anos atrás — e a fauna que vivia na época.
Hoje, o Museu Municipal Aristides Carlos Rodrigues, de Candelária, abriga fósseis ou réplicas de 23 das 38 espécies de animais encontradas no município e cidades vizinhas, que viveram na região em torno de 230 milhões atrás.
Entre elas, existem dinossauros, répteis, anfíbios e cinodontes (os ancestrais dos mamíferos), todos hoje extintos.
De acordo com o paleontólogo argentino, Agustin Martinelli, do Museo Argentino de Ciencias Naturales Bernardino Rivadavia, que vêm, desde 1998, realizando pesquisas na região e numa área próxima ao trevo de acesso a Vera Cruz, na BR-287, o conjunto de fósseis encontrado na área, que incluiu Santa Cruz do Sul, a 8 km, e Candelária, a 31 km, mostra um período da evolução biológica prévio a origem dos mamíferos.
"Eram ainda formas primitivas mas que já mostravam especializações na dentição, olfato e visão", explica.
Preservados em rocha
O biólogo e doutor em Paleontologia, Heitor Franscischini, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que realiza estudos em Candelária desde 2012, há naquele município e região fósseis de alguns dos dinossauros mais antigos do mundo, assim como os antepassados diretos dos mamíferos.
"Todas as espécies descobertas em Candelária trazem novas informações à luz da ciência, tornando possível a compreensão de como era o passado da região no Período Triássico e como eram as relações entre estas espécies neste período", diz.
A riqueza fossilífera de Candelária e arredores tem explicações geológicas e ambientais. Segundo Carlos Rodrigues, curador do Museu Municipal, que leva o nome do seu pai, durante o Triássico a região fazia parte da grande bacia sedimentar do Paraná, uma imensa área baixa, com rios e lagos, para onde os animais mortos erram carreados e soterrados.
"Depois, isso aqui virou um deserto, com os rios sendo substituídos por dunas, movimentadas pelo vento", conta.
Esse deserto e suas rochas soterraram e compactaram o material da bacia mais baixa, transformando-o nas chamadas rochas sedimentares, nas quais os restos dos animais que viviam na época ficaram incrustados e preservados.
Dessas pedras são extraídas até hoje as lajes, usadas em calçadas urbanas – pelo menos até há alguns anos atrás.
Nessa época, no início da era Mesozoica (252 a 65,5 milhões de anos atrás), que inclui os períodos Triássico, Jurássico (201 a 142 milhões de anos atrás) e Cretáceo (142 a 65,5 milhões de anos atrás), todos os continentes estavam unidos num só supercontinente, chamado Pangeia, desértico e quente em seu interior, com florestas somente próximas ao litoral e aos grandes rios.
Mas justamente na época em que viveram os animais hoje fossilizados de Candelária e região, a Pangeia começou a se fragmentar.
A princípio, essa fragmentação deu origem a dois grandes continentes, um ao norte, a Laurásia, composto pela América do Norte, Europa e Ásia, e outro ao sul, Gondwana, formado pela América do Sul, África, Madagascar, Índia, Oceania e Antártida.
No Cretáceo Inferior (primeira metade do período), por volta de 110 milhões de anos atrás, surgiu o oceano Atlântico, separando a América do Sul da África e dando aos continentes uma conformação semelhante à de hoje.
Rodrigues lembra que todos esse processo de fragmentação acrescentou mais uma camada de rocha na região de Candelária — e em outras parte do mundo.
"A separação dos continentes jogou lava em abundância e formou a Serra Geral, que vai daqui até São Paulo", explica. "Essas rochas vulcânicas formaram uma camada de empilhamento de 100 metros de espessura, que cobriu o antigo deserto."
Esse processo não ocorreu do dia para a noite, claro. Durou milhões de anos, até o Cretáceo.
Hoje, essa camada de rocha basáltica, formada a partir da lava vulcânica, se estende de Venâncio Aires até São Pedro de Sul, a 129 e 330 km e de Porto Alegre, respectivamente, passando por Santa Cruz do Sul, Vera Cruz, Vale do Sol, Candelária e Santa Maria, numa faixa de 200 km por 60 km, ao longo da RSC-287, também chamada de BR-287, uma rodovia estadual que corta ao meio o Rio Grande do Sul, de leste a oeste, indo da capital a São Borja, na fronteira com a Argentina.
Seu nome oficial é Rodovia da Integração. É no trecho entre Venâncio Aires e São Pedro do Sul que se encontram os fósseis.
Depois que as três camadas estavam formadas, a erosão causada pela chuva, rios e riachos e pelo vento desgastou, também durante milhões de anos, a área deixando à vista os chamados afloramentos rochosos e os fósseis neles incrustados. A partir de então, começaram as descobertas.
Coincidentemente – ou não – o primeiro achado importante foi de um paleontólogo gaúcho, mas que havia sido pesquisador da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos.
A história dele é interessante por si só. Nascido em Santa Maria em 9 de outubro de 1905, filho de um casal de missionários metodistas norte-americanos, Llewellyn Ivor Price se mudou com a família, em 1916, para o país de seus pais. Lá, ele se formou, em 1930, em geologia pela Universidade de Oklahoma, onde deu início a sua carreira.
Marco histórico
Em 1932, Price começou a trabalhar como professor e pesquisador na Universidade de Chicago, até 1934, quando passou para Universidade Harvard, na qual ficou até 1944.
Ele esteve brevemente de volta ao Brasil entre 1936 e 1937, chefiando uma expedição paleontológica de Harvard, quando foi convidado para fomentar e desenvolver pesquisas na área de paleontologia de vertebrados no país. Assim, ao deixar Harvard foi convidado a fazer parte do quadro de paleontólogos do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM).
Entre suas descobertas e coletas no Brasil está o Estauricossauro, o primeiro dinossauro encontrado no território brasileiro.
Além disso, Price estudou répteis, anfíbios, mamíferos, peixes e entre seus maiores achados estão o Peirosaurus torminni e o Baurusuchus pachecoi, duas espécies de crocodilomorfos (grupo de arcossauros que incluem os crocodilos e seus parentes extintos) do Cretáceo.
E então voltamos à Candelária. Em 1946, Price descobriu o primeiro fóssil coletado no município, no distrito de Pinehiro. Tratava-se de um pequeno réptil, de cerca de 40 cm, que viveu há cerca de 235 milhões.
Em homenagem à cidade, ele o batizou de Candelaria barbouri. Desde então, as descobertas na região não pararam mais.
Em 1979, o paleontólogo Mario Costa Barberena (1934-2013) fez uma das descobertas mais importante da região: um novo dicinodonte, que até então só tinha um similar conhecido na Argentina.
Conhecidos como “as vacas do Triássico”, esses animais foram os principais animais herbívoros entre o Permiano médio e o Triássico Superior (mais ou menos 260 – 200 milhões de anos) e tiveram distribuição cosmopolita, por todo o supercontinente Pangéia.
A descrição desse material foi publicada em 1981, sendo denominado Jachaleria candelariensis.
Na década de 1990 ocorreram novas descobertas marcantes. Uma delas foi a primeira espécie de dinossauro encontrada na região, que recebeu o nome de Guaibasaurus candelariensis.
"Em 2002, iniciamos uma parceria com UFRGS, sob o comando do professor César Schultz, e temos um novo marco na história", orgulha-se Rodrigues.
"Dá-se um grande salto, a partir do qual a paleontologia na região se confunde com a história do próprio Museu Municipal e do seu corpo de voluntários."
Antes disso, nos anos 1990, Schultz havia descoberto uma espécie de cinodonte traversodontídeo, um grupo de ancestrais antigos dos mamíferos e hoje extinto. O achado ocorreu num afloramento, chamado de Schöenstatt, localizado no município de Santa Cruz do Sul, por isso, o animal foi batizado de Santacruzodon.
Esqueleto quase completo
O animal foi descrito cientificamente em 2003, pelo paleontólogo argentino Fernando Abdala e a pesquisadora brasileira Ana Maria Ribeiro.
"Eles estudaram melhor os materiais e concluíram que parte desses fósseis representavam uma nova espécie", conta o geocientista Maurício Rodrigo Schmitt, da Universidade Regional de Blumenau (FURB), em Santa Catarina.
"Os dois, então, a batizaram de Santacruzodon hopsoni com base em um crânio e uma mandíbula coletados no final dos anos 90."
Agora, Schmitt está fazendo doutorado em Geociências, na UFRGS, sobre os cinodontes traversodontídeos.
"Esse grupo viveu durante grande parte do Triássico (entre cerca de 245 e 208 milhões de anos atrás)", diz.
"No Brasil, estão representados por espécies que viveram entre aproximadamente 240 a 225 milhões de anos. O Santacruzodon especificamente, viveu em uma parte do Triássico, o Carniano, que tem cerca de 237 milhões de anos."
Em 2022 foram descritos alguns novos materiais atribuídos ao Santacruzodon hopsoni, por um então aluno de doutorado da UFRGS, Tomaz Melo, junto com Martinelli e a pesquisadora Marina Bento Soares, hoje no Museu Nacional, no Rio de Janeiro.
"Eles descreveram 11 novos fósseis de Santacruzodon, incluindo materiais de Santa Cruz do Sul, Venâncio Aires e principalmente de Vera Cruz", revela Schmitt.
"Esses de Vera Cruz são os mais importantes, pois incluem um esqueleto quase completo de Santacruzodon, o que ainda não era conhecido para essa espécie."
O próprio Melo conta que fez seu mestrado e doutorado estudando os fósseis encontrados em Santa Cruz do Sul e Vera Cruz.
"Eu mesmo fiz vários trabalhos de campo, com coletas nos dois municípios", conta.
"Eu encontreis novos fósseis lá e em outras cidades das redondezas também. Esses materiais do Santacruzodon especificamente vêm de camadas específicas, que só se conhecem em Santa Cruz do Sul, Vera Cruz e Venâncio Aires."
Num primeiro momento, os fósseis encontrados em Santa Cruz do Sul foram descritos a partir de apenas algumas mandíbulas, alguns pedaços de crânio bem completo e pequenos.
Em seu estudo, Melo percebeu que, na verdade, os ossos eram de indivíduos jovens, ou seja, filhotes. Por isso, se achava que o Santacruzodon era de pequeno porte.
Depois, ele estudou os materiais encontrados em Vera Cruz, por outros pesquisadores, inclusive um esqueleto quase completo e um crânio com cerca de 24 cm de comprimento, que seria de animais adultos.
"A maioria fósseis do Santacruzodon de Vera Crua era bem maior", diz. Por isso, após sua descrição o animal passou a ser considerado um dos maiores cinodontes do período.
A descoberta mais recente, mas não menos importante foi descrita em 2018 por pesquisadores UFRGS e da Universidade Federal Vale do São Francisco (Univasf).
Eles descobriram que os restos fossilizados doados anonimamente ao Museu Municipal de Candelária pertenciam a uma espécie de réptil até então desconhecida, que viveu há 237 milhões de anos.
Ele deram o nome de Pagosvenator candelariensis ao animal, que significa "caçador da região de Candelária".
Para o professor de paleontologia da Univasf, Marco Franca, coautor da descrição do Pagosvenator candelariensis, a importância dos fósseis de Candelária e região está no fato de o período Triássico ter siso um "boom experimental" de novas formas de vida proporcionados pela evolução.
"Antes do Triássico, veio o período Permiano, que tinha formas de vida muitos diferentes", explica. "o final dele, ocorreu a maior extinção de todos os tempos, nos quais os pesquisadores consideram que a vida na Terra como um todo esteve por um fio."
Estima-se que cerca de 81% das espécies marinhas 70% das terrestres se extinguiram.
"Após esse dramático evento, as formas de vida que sobreviveram experimentaram novas ecologias, novos habitats, um ambiente intensamente seletivo", diz Franca.
"Foi quando essas novas formas surgiram por evolução. Estou falando, como exemplo, do surgimento dos dinossauros, dos lagartos, da linhagem dos crocodilos, dos mamíferos, e das tartarugas. O que conhecemos hoje de grandes grupos dos animais vertebrados teve seu início nesse período.”
De acordo ele, desse ponto de vista, qualquer lugar no mundo onde haja afloramentos triássicos é importante para a paleontologia mundial, pois eles passam informações sobre como foi a evolução destes grupos, como sobreviveram e se diversificaram após um grande evento de extinção.
"E a região de Candelária, por ter as rochas desse período, contribui para o avanço científico", diz.
Schmitt, por sua vez, destaca a importância do Museu Municipal de Candelária para a conservação dos fósseis da região.
"Muitos dos materiais mais recentes do município e região são coletados ou estão depositados no Museu, mantendo os fósseis na sua localidade de origem", elogia.
"Além de ajudar a preservar e coletar o material, um museu local possibilita uma interação maior com a sociedade, fazendo com que as pessoas entendam paleontologia e compreendem que os fósseis são um patrimônio cultural da cidade e da região, contribuindo para novos achados e a preservação de localidades fossilíferas."
Fonte: BBC